quinta-feira, novembro 09, 2006

Ausência...

Imagem de Olga Sinclair


Quero dizer-te uma coisa simples:a tua ausência dói-me.
Refiro-me a essa dor que não magoa, que se limita à alma;
mas que não deixa, por isso,
de deixar alguns sinais -
um peso nos olhos, no lugar da tua imagem, e um vazio nas mãos.
Como se as tuas mãos lhes tivessem roubado o tacto.
São estas as formas do amor,
podia dizer-te; e acrescentar que as coisas simples
também podem ser complicadas,
quando nos damos conta da diferença entre
o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz a tua memória;
e a realidade aproxima-me de ti,
agora que os dias correm mais depressa,
e as palavras ficam presas numa refracção de instantes,
quando a tua voz me chama de dentro de mim -
e me faz responder-te uma coisa simples,
como dizer que a tua ausência me dói.


Poema de Nuno Júdice

quarta-feira, novembro 08, 2006

Poema simples

Imagem de Rita Isabel


Meus devaneios sós de adolescente,
ensimesmada em vã filosofia
e audazes concepções, eu trocaria
por ermo longe...onde calmamente

Olhasse o morrer de cada dia.
Depois, o envelhecer serenamente,
sem problemas de amor, o tempo ausente,
sem ler tratados de psicologia.

Vida simples, humilde, sem canseiras,
sem amanhã, nem bruscas ambições
da janela, ao longe, a ver-se o mar.

E plácida, embalar-me a vida inteira
afagando tranquila, as ilusões
no doce aconchego do meu lar!...



Ouvir o poema na voz de Luís Gaspar 
(Desligar p.f. a música de fundo para ouvir o poema)


(Memórias da minha juventude...)

segunda-feira, novembro 06, 2006

Novembro

Pintura de Marc Chagall

O sabor dos derradeiros dias
Roda ainda na casa e pela rua
Folhas vermelhas gemem por morrer
Mas nós não nos lembramos

O Inverno varre o céu e enche
O mundo inteiro de um sonho de vazio
Temos de estar sós e não ter nada
Horas sem fim na casa inabitada

Parece que partimos. Cada dia
Mais profundo na noite se aprofunda
E nós queremos partir – todos os cantos
Empalidecem ao pé desta decida
Até às pedras geladas do silêncio

Olhamos à janela de olhos fitos
Longe a claridade além dos rios
Queremos ir com o vento com o perigo
Queremos a injustiça do castigo
Somos nós que a nós mesmo nos matamos
E com mais amor do que quando amamos
Sentimos sobre nós descer o frio.
Quem me roubou o tempo que era um
quem me roubou o tempo que era meu
o tempo todo inteiro que sorria
onde o meu Eu foi mais limpo e verdadeiro
e onde por si mesmo o poema se escrevia



Poema de Sophia de Mello Breyner e Andresen



Em dia de Aniversário...
deixo-vos um seu poema na voz do Luís Gaspar 
(desligar a música de fundo, p.f. para o ouvir)

domingo, novembro 05, 2006

Hoje apeteceu-me...

Imagem da Angie


Hoje apeteceu-me colar-me à cadeira
Auto-estrada, 60 70, terceira
Passa um, 90 100, quarta
Passa-os a todos, 120 130, quinta

Acelerar, tirar o cinto e Ligar o cruzeiro
Abrir os braços e do carro, voar para fora
Descolar suavemente como um veleiro
Ver a estrada toda e ir-me embora

Aumentar, crescer
Ver a cidade, passar os dedos pelas ruas
Mergulhar no mar de espuma a ferver
Olhar a um lance paisagens que são tuas

Aumentar, expandir
Segurar o planeta na mão
conhecer as plantas, os bichos, o porvir
Abraçar o sol no braço da constelação

Aumentar, consentir
Percorrer galáxias num segundo
Trespassar conglomerados, ver o Mundo
Olhar nos olhos de Deus e com ele me fundir



(Poema de P Az in O Zigurate )

quinta-feira, novembro 02, 2006

Tulipas




Conhecera-a numa reunião de amigos. Ela era como se fizesse já parte do mobiliário.

O seu sorriso afável, a voz doce, o cabelo cinzento que lhe conferia uma maturidade, que a Vida, nas suas próprias palavras, lhe tinha ofertado.


No nascimento da minha filha, foi uma das primeiras visitas que tive.


Na mão levava um grande ramo de tulipas de todas as cores e no olhar a transparência da sua alma.


Olhou bem dentro dos meus olhos e disse-me naquela entoação doce que nunca esquecerei:


- Tens uma filha linda. Sabes, os filhos são a coisa mais importante que a Vida nos pode oferecer. Por eles fazemos os maiores sacrifícios.


E tirando uma tulipa do ramo, colocou-a na minha almofada, ao mesmo tempo que dizia que era das flores que mais gostava. Porque não tinham espinhos e eram resistentes e frágeis ao mesmo tempo.

Recordo que, de todas as flores que me ofereceram naquele dia, as tulipas foram as que mais tempo duraram…


De vez em quando as nossas vidas cruzavam-se, até porque a distância entre as nossas casas era curta.


Tive ainda o privilégio de receber tulipas de suas mãos aquando do nascimento do meu segundo filho.


E, de repente, deixei de a ver. Isolara-se do mundo mortificada pelo desgosto de, mais uma vez, ter sido trocada por alguém muito mais jovem que ela.


Os meses foram passando e nunca mais soube dela!


Não sei o tempo que já tinha decorrido, quando inesperadamente a encontrei. O mesmo sorriso, a mesma voz doce, só o cabelo é que mudara, o cinzento tinha dado lugar a um branco de neve.
Instintivamente, passei-lhe a mão pelo cabelo…


- Que lindo… tão branquinho… – exclamei.
- Pois é… a Vida oferece-nos disto… – a sua voz era fraca.


O chá foi gradualmente arrefecendo nas chávenas, enquanto conversávamos naquela tarde. E conheci-lhe a história.


Os filhos tinham sido a sua única felicidade. Tinha mantido o casamento para não os prejudicar e preservar a imagem que o marido gostava.


Queria esperar pelo momento oportuno para conseguir a sua liberdade. Talvez um dia Deus fosse bondoso com ela.


Voltara, porque o filho mais velho lhe pedira. O pai estava doente e tinham-no deixado só. O orgulho feminino dizia-lhe para não voltar, mas o amor aos filhos e à sua estabilidade emocional foram mais fortes.


Os tempos que se seguiram tinham sido difíceis, mas o sofrimento de anos tinha terminado. Naquele dia fazia precisamente um mês que ele fora a enterrar.


O relato caiu em mim fundo. E trouxe-me memórias.


Abri-lhe o meu coração e esvaziei a minha alma.


A serenidade das suas palavras, foram um bálsamo em mim.


- Não te arrependas nunca das tuas decisões. A tua Paz interior é o que te fará sobreviver neste mundo tão complexo.


Quando nos abraçámos, o seu olhar era cheio de ternura.
Esta foi a nossa última conversa.


Guardo na memória o seu sorriso e a sua voz tão tranquila.


Hoje, finalmente, encontrou a Liberdade e ficou em Paz.


Levei-lhe flores na despedida…


Tulipas vermelhas.