A primeira vez que o vi o prédio estava em fase de acabamento. Mas ele já lá morava porque tinham tido necessidade urgente de se mudar.
Gostei de imediato do seu olhar franco e directo. Não tinha receio de olhar os meus olhos e cumprimentava-me com uma alegria que chegava a comover-me.
O tempo que decorreu entre os acabamentos finais da minha habitação e a mudança aproximou-nos.
Ele vinha ligeiro ao meu encontro e eu parava a dar-lhe palavras de afecto.
Acho que a nossa relação começou de imediato aí.
Dia a dia íamos cimentando a nossa amizade. Eu sentia em cada demorado olhar o carinho que transbordava dele. A vida já o tinha maltratado muito e, notava-se, que ele só queria que lhe prestasse atenção.
Por vezes, nos meus passeios a pé, ele acompanhava-me. Ouvia com atenção o que eu lhe dizia, atento aos meus movimentos.
Por isso, não foi difícil para mim, quando me pediram para tomar conta dele. Ele andava adoentado e a proprietária do apartamento tinha arranjado um novo emprego pelo que não podia dar-lhe a atenção a que estava habituado.
Todos os dias, à mesma hora, passeávamos. Depois do jantar, já ele me esperava ansioso. Notava-se.
Foi assim durante algum tempo e, cada vez mais, o nosso afecto era visível.
Os moradores sorriam quando nos viam passar. Nunca fui de grandes conversas com a vizinhança, por isso a nossa amizade atraía sorrisinhos de quem não compreendia o que se estava a passar.
Contingências da minha vida pessoal levaram a que nos afastássemos durante algum tempo e, soube mais tarde, a tristeza dele durante esse tempo.
Quando nos encontrámos novamente, ele correu para mim como louco e saltou para o meu colo. “Lambuzou” o meu rosto de beijos que, diga-se a verdade, me encheu de alegria.
Recordei este episódio hoje, ao abrir de manhã a janela, e o meu coração disparar ao aperceber-me do vulto que estava no estacionamento.
Nem esperei pelo elevador. Galguei os três andares e corri para ele.
Mas a alegria deu lugar à decepção. O olhar que eu esperava encontrar não era o dele.Senti uma lágrima correr-me pelo rosto e, metendo as mãos nos bolsos, comecei a percorrer o caminho que tantas vezes partilhámos.
Recordei aquela vez em que ele se atirou do primeiro andar e quase ficou cego.
Tratei dele com tanto carinho: levantava-me bem cedo para lhe colocar as gotas nos olhos e o antibiótico sempre a horas certas. Grande foi a minha alegria quando, finalmente, o deram como curado!
E daquela vez em que foi atropelado e o seu choro me fez correr feita tola até à Clínica subindo as escadas com ele ao colo? Como ele pesava!
Mais tarde, quando tudo parecia estar sanado, outra aflição. Que seria aquele papo enorme que ele tinha quase do tamanho de uma maçã? Um tumor?!
Não, felizmente! Como poderia imaginar que ele pudesse sofrer da próstata?
- É da idade. Acontece por vezes. A força da pancada no atropelamento provocou-lhe uma inflamação.Ele tudo consentia, com aquele olhar meigo que me enchia o coração.
Assim se passaram meses… cinco, seis? Nunca os contei. Mas era feliz por ele estar feliz.
Até que um dia não o vi na porta da entrada.
A proprietária do apartamento, regressada entretanto, resolvera dar-lhe outro encaminhamento porque, segundo ela, não podia ter aquela responsabilidade.
Arranjara-lhe uma quinta... iria ficar bem…
Olhei-a nos olhos. Ela desviou o olhar. Percebi que estava a mentir.
A partir daquele dia, olho com tristeza para o parque de estacionamento, esperando o seu regresso.
Sinto a tua falta, Raposo… estejas onde estiveres, permanecerás vivo no meu coração.