segunda-feira, março 03, 2008

Jeito de escrever

Fotografia de Charles Larson

Não sei que diga.
E a quem o dizer?
Não sei que pense.
Nada jamais soube.

Nem de mim, nem dos outros.
Nem do tempo, do céu e da terra, das coisas...
Seja do que for ou do que fosse.
Não sei que diga, não sei que pense.

Oiço os ralos queixosos, arrastados.
Ralos serão?
Horas da noite.
Noite começada ou adiantada, noite.
Como é bonito escrever!

Com este longo aparo, bonitas as letras e o gesto - o jeito.
Ao acaso, sem âncora, vago no tempo.
No tempo vago...
Ele vago e eu sem amparo.
Piam pássaros, trespassam o luto do espaço, este sereno luto das horas. Mortas!

E por mais não ter que relatar me cerro.
Expressão antiga, epistolar: me cerro.
Tão grato é o velho, inopinado e novo.
Me cerro!

Assim: uma das mãos no papel, dedos fincados,
solta a outra, de pena expectante.
Uma que agarra, a outra que espera...
Ó ilusão!
E tudo acabou, acaba.
Para quê a busca das coisas novas, à toa e à roda?

Silêncio.
Nem pássaros já, noite morta.
Me cerro.
Ó minha derradeira composição! Do não, do nem, do nada, da ausência e solidão.

Da indiferença.
Quero eu que o seja! da indiferença ilimitada.
Noite vasta e contínua, caminha, caminha.
Alonga-te.
A ribeira acordou.



(Poema de Irene Lisboa)

8 comentários:

Unknown disse...

Tenho andado num desencontro tal...

Mas entrei para te ler e deixar o meu carinho, amizade e um abraço.

ZezinhoMota

Graça Pires disse...

Não sei que diga, não sei que pense.
Da Irene Lisboa só conheço o livro "Solidão". Mas gostei muito deste poema.
Um beijo

Meg disse...

«Irene Lisboa será, toda ela, um documento humano de irrecusável pungência e beleza: e nenhuma obra de ficção poderá perdurar mais nem melhor do que as angústias que ela nos faz sentir e adivinhar».´
Este foi o vaticínio de Rodrigues Miguéis, sobre Irene Lisboa, há muitos, muitos anos.

E não se enganou.

Ao ler este poema não posso deixar de me lembrar de "Uma Mão Cheia de Nada...

Uma boa semana, e um abraço

Paula Raposo disse...

Não conhecia este poema de Irene Lisboa. Triste...beijos.

Oliver Pickwick disse...

Um poema profundo e filosófico, escrito com a tinta mais pura da existência.
Beijos, e dias felizes!

Anónimo disse...

Não imaginas a alegria que senti por descobrir aqui Irene Lisboa, uma das primeiras, senão única mulher a pertencer à direcção da revista Seara Nova, naquela época!
Falar dela é avivar memórias familiares que me são muito caras! Um dia te falarei dela.

Sob o pseudónimo João Falco, escreveu um poema fabuloso que te dedico hoje:

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necró-
pole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...

*Poema Afrodite de Irene Lisboa [João Falco],Outono Havias de Vir, 1937*

Cpmtos do J.N.

Anónimo disse...

Não imaginas a alegria que senti por descobrir aqui Irene Lisboa, uma das primeiras, senão única mulher a pertencer à direcção da revista Seara Nova, naquela época!
Falar dela é avivar memórias familiares que me são muito caras! Um dia te falarei dela.

Sob o pseudónimo João Falco, escreveu um poema fabuloso que te dedico hoje:

Formosa.
Esses peitos pequenos, cheios.
Esse ventre, o seu redondo espraiado!
O vinco da cinta, o gracioso umbigo, o escorrido
das ancas, o púbis discreto ligeiramente alteado,
as coxas esbeltas, um joelho único suave e agudo,
o coto de um braço, o tronco robusto, a linha
cariciosa do ombro...
Afrodite, não chorei quando te descobri?
Aquele museu plácido, tantas memórias da Grécia
e de Roma!
Tantas figuras graves, de gestos nobres e de
frontes tranquilas, abstractas...
Mas aquela sala vasta, cheia, não era uma necró-
pole.
Era uma assembleia de amáveis espíritos, divaga-
dores, ente si trocando serenas, eternas e nunca
desprezadas razões formais.

Afrodite, Afrodite, tão humana e sem tempo...
O descanso desse teu gesto!
A perna que encobre a outra, que aperta o corpo.
A doce oferta desse pomo tentador: peito e ventre.
E um fumo, uma impressão tão subtil e tão pro-
vocante de pudor, de volúpia, de reserva, de
abandono...
Já passaram sobre ti dois mil anos?

Estranha obra de um homem!
Que doçura espalhas e que grandeza...
És o equilíbrio e a harmonia e não és senão corpo.
Não és mística, não exacerbas, não angústias.
Geras o sonho do amor.

Praxíteles.
Como pudeste criar Afrodite?
E não a macerar, delapidar, arruinar, na ânsia de
a vencer, gozar!
Tinha de assim ser.
Eternizaste-a!
A beleza, o desejo, a promessa, a doce carne...

*Poema Afrodite de Irene Lisboa [João Falco],Outono Havias de Vir, 1937*

Cpmtos do J.N.

Anónimo disse...

Obrigado, por partilhar este poema no seu blog, é a primeira vez que aqui passo vou fazer deste endereço uma das minhas moradas...

Cesar Boura