Há muito que desejava tirar uma fotografia daquele lado da praia quando o Sol beija o infinito em todo o seu esplendor.
Desolada, apercebi-me mais uma vez, que a velhinha Zenit tinha ficado em casa pendurada numa cadeira qualquer.
Deixei-me cair na areia embalada pelo som das ondas em maré vaza.
Foi quando o vi.
Caminhava devagar, de cabeça levantada, todo vestido de negro e chapéu da mesma cor na cabeça, como se nada existisse à sua volta.
- Estranha figura, pensei…
Parou a escassos metros de mim, mas creio que não me viu.
Como se de um ritual se tratasse, estendeu a manta que trazia debaixo do braço cuidadosamente na areia, colocando-lhe em cima um objecto que não consegui identificar. Nos segundos seguintes deixou-se ficar a olhar demoradamente esse objecto e depois encaminhou-se para o mar.
Tive um sobressalto perante a firmeza do seu andar mas, quando ele finalmente parou em cima da rocha e me apercebi da sua voz, confesso que a minha curiosidade aumentou.
O ruído que vinha do mar e o vento que entretanto se tinha levantado abafavam as suas palavras. Foi quando começou a levantar os braços e a sua voz se tornou mais clara, que me apercebi que declamava!
Ao longo de segundos em que a sua voz, como que soluçando desafiava o mar que entretanto quase lhe banhava os pés, senti aquelas palavras como se de uma oração se tratasse.
Repentinamente voltou-se, dirigiu-se à manta em passos firmes pegando no objecto que lá deixara e subiu novamente para o mesmo rochedo.
A minha curiosidade estava ao rubro e, pondo-me de pé, confesso que me aproximei um pouco, quando percebi que ele espalhava algo que ia retirando da caixa em direcção ao mar, dizendo palavras entrecortadas em soluços.
Os momentos seguintes foram de um tal silêncio que nem o mar se fazia ouvir.
Quando finalmente abandonou o rochedo e se sentou na manta, ganhei coragem e dirigi-me a ele.
- O senhor está bem? Precisa de alguma coisa? – perguntei-lhe um pouco a medo.
- Agora estou bem, fiz o que tinha que ser feito. - responde-me numa voz quase sussurrante, acrescentando - Peço perdão se a incomodei.Que não, que não me tinha incomodado, antes pelo contrário, tinha sido um momento único, respondi-lhe mas com aquela ansiedade de querer saber mais.
Foi quando, apontando para o chão, me convida a sentar ao lado dele e me conta a história de um amor com mais de 50 anos entre ele e a esposa estrangeira, que abandonou tudo e o seguiu contra a vontade da família.
Sentindo-se velho e doente, receava não cumprir a última vontade da esposa, pelo que tinha resolvido naquela tarde cumprir a palavra que lhe tinha dado: atirar as cinzas dela ao mar, lendo o seu poema favorito, que tinha ela própria um dia recitado na língua materna no funeral do Pai.
Baixinho, como numa oração, voltou a recitar as palavras que eu antes não conseguira ouvir:
Desolada, apercebi-me mais uma vez, que a velhinha Zenit tinha ficado em casa pendurada numa cadeira qualquer.
Deixei-me cair na areia embalada pelo som das ondas em maré vaza.
Foi quando o vi.
Caminhava devagar, de cabeça levantada, todo vestido de negro e chapéu da mesma cor na cabeça, como se nada existisse à sua volta.
- Estranha figura, pensei…
Parou a escassos metros de mim, mas creio que não me viu.
Como se de um ritual se tratasse, estendeu a manta que trazia debaixo do braço cuidadosamente na areia, colocando-lhe em cima um objecto que não consegui identificar. Nos segundos seguintes deixou-se ficar a olhar demoradamente esse objecto e depois encaminhou-se para o mar.
Tive um sobressalto perante a firmeza do seu andar mas, quando ele finalmente parou em cima da rocha e me apercebi da sua voz, confesso que a minha curiosidade aumentou.
O ruído que vinha do mar e o vento que entretanto se tinha levantado abafavam as suas palavras. Foi quando começou a levantar os braços e a sua voz se tornou mais clara, que me apercebi que declamava!
Ao longo de segundos em que a sua voz, como que soluçando desafiava o mar que entretanto quase lhe banhava os pés, senti aquelas palavras como se de uma oração se tratasse.
Repentinamente voltou-se, dirigiu-se à manta em passos firmes pegando no objecto que lá deixara e subiu novamente para o mesmo rochedo.
A minha curiosidade estava ao rubro e, pondo-me de pé, confesso que me aproximei um pouco, quando percebi que ele espalhava algo que ia retirando da caixa em direcção ao mar, dizendo palavras entrecortadas em soluços.
Os momentos seguintes foram de um tal silêncio que nem o mar se fazia ouvir.
Quando finalmente abandonou o rochedo e se sentou na manta, ganhei coragem e dirigi-me a ele.
- O senhor está bem? Precisa de alguma coisa? – perguntei-lhe um pouco a medo.
- Agora estou bem, fiz o que tinha que ser feito. - responde-me numa voz quase sussurrante, acrescentando - Peço perdão se a incomodei.Que não, que não me tinha incomodado, antes pelo contrário, tinha sido um momento único, respondi-lhe mas com aquela ansiedade de querer saber mais.
Foi quando, apontando para o chão, me convida a sentar ao lado dele e me conta a história de um amor com mais de 50 anos entre ele e a esposa estrangeira, que abandonou tudo e o seguiu contra a vontade da família.
Sentindo-se velho e doente, receava não cumprir a última vontade da esposa, pelo que tinha resolvido naquela tarde cumprir a palavra que lhe tinha dado: atirar as cinzas dela ao mar, lendo o seu poema favorito, que tinha ela própria um dia recitado na língua materna no funeral do Pai.
Baixinho, como numa oração, voltou a recitar as palavras que eu antes não conseguira ouvir:
Pintura de Gustave Courbet
"Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!... "
"Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!
Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, a alma doente
D’alguém que quis amar e nunca amou!
Toda a noite choraste... e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, adivinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!
Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!... "
Quando me despedi tinha a voz embargada de emoção por ouvir um dos poemas de Florbela Espanca ditos naquele momento tão especial, mas percebi pelo olhar cheio de serenidade do velho senhor que ele tinha realmente cumprido a sua missão.
Há momentos que não se esquecem. Este foi um deles…
36 comentários:
mesmo não gostando de poesia o que testemunhas-te foi seguramente um momento que não esquecerás é também por coisas como estas que realmente vale a pena viver
Episódios como estes recordam-nos o quão mágica pode ser a vida. A beleza de uma vida a dois. Tão depressa não vou esquecer a história aqui narrada. Obrigado.
Estou sem ânimo... talvez cansada...
Hoje serei breve direi apenas BOM FIM DE SEMANA
Beijos
Querida amiga:
Que história fantástica!
Que narrativa tão boa!
Que privilégio assistir a uma cena dessas!
Obrigado pela tua visita.
Beijinhos
Amiga,
Voltei hoje a blogosfera, depois de quase 3 meses de desncanso.
E volto hoje com festa... Gostaria de poder contar com sua presença nesta data duplamente feliz para mim...
Beijos, flores e muitos sorrisos!
Ontem entrevistei uma senhora que faz hoje 80 anos e cuja história aqui não cabe... Porque a história de ninguém cabe em parte alguma. Todavia, regressei envolvida na sua narrativa, como se essa fosse um manto. Porque era diferente, porque era de amor, porque foi feliz, porque foi triste, porque venceu barreiras e ganhou o sonho, porque a tal da morte acabaria por vir e lavar-lhe o o homem por quem se enamorara aos 17 e nuca deixara de amar. Algo que ele sempre lhe dissera, dada a diferença de idades entre ambos: "Um dia, minha querida, vais voltar a ser só tu".
Lado a lado com uma vida de mulher de armas, que sempre trabalhou, educou 5 filhos e fez pelo país, há essa história que conta com detalhes elevados, de uma alma rica. E a par disto tudo, há o que a responsável daquela residência para idosos me contou:
Que há uns tempos, numa visita guiada que fez com os idosos ao Museu da Marinha, aquela mesma "menina" dirigiu-se ao guia, um oficial da Marinha como o seu companheiro fora, e agradeceu-lhe a visita, com dois beijos e lágrimas nos olhos... E o resto, o que ficou por dizer, o que fica lá dentro até ao fim, é a tal história que não cabe em mais lado nenhum.
Gostei muito! :-)
Um beijinh*
Magnifico história esta lida, e por certo dificil de esquecer, para quem a presenciou, como foi o teu caso, e para quem a leu, como foi o meu. Simplesmente de ficar agarrado á sua leitura.
Gostei muito...
Bjs de Boa Tarde
que arrepio...
xi
maria
Foi a primeira vez que visitei o seu blog e não queria saír sem dizer que gostei dos textos e poesia escolhidos bem como das fotos principalmente o quadro que ilustra o poema de Espanca. Ah e achei imensa graça ao poema brejeiro que o seu amigo brasileiro lhe enviou. Verdadeira poesia popular. Um abraço amigo. António-------------------
---www.Louletania.blog.vu --------------
Ninguém como Florbela cantou a dor, sobretudo a dor da separação, do fim ou do que poderia ter sido e não foi (que é outra forma de fim).
Excelente este "Momentos"; a ternura do ritual, a cerimónia da vontade/compromisso realizada com sublime delicadeza... o empréstimo das palavras de Florbela Espanca que realçaram o "quadro" (e Florbela realça sempre por onde anda), e a imagem soberba de Coulbert... Tudo isto brilha menina Marota. Beijinhos
Belíssimo conto!
beijos
Tenho que ir reclamar à Lua de Logons a falta de avisos.
O teu odor é tão mágico que jamais me prediria de ti.
Obrigado por me teres reencontrado.
Bom fim de semana.
Fica bem
Fiquei arrepiada (foi verdade ou é somente uma história? Há coisas tão insólitas)
Um dos melhores momentos que tive numa praia quase deserta foi uma rapariga que se sentou num rochedo, tirou uma flauta transversal e tocou para o mar.
Foi único.
Boa tarde
Intenço e gratificante..
Adorei...
A história é de uma sensibilidade marcante. Excelente este teu blog!
Obrigado pela visita!
Beijos,
Nuno Osvaldo
É um brilho só e imenso este teu texto que, mesmo não o tendo vidido mas após a sua leitura, jamais se esquece.
Um bjinho grande, amiga e um bom fim-de-semana
Excelente conto.
És marota, mas escreves bem (for us...).
Um beijo.
Muito acolhedor esse cantinho.
Retribuirei todas as suas visitas, com certeza!
Uma história de uma sensibilidade comovente. Verdade ou ficção, não sei e é muito importante. A essência é a perenidade do amor. Isso já conta e de que forma! **
Cálido, muito cálido e envolvente passear-se por aqui.
A narrativa aqui descrita é sublime.
Já assisti e, por vezes, protagonizei (admito) momentos tão raros e profundos como este... cuja leitura foi devolvendo à memória como uma leve brisa, obrigada...
Quando o humano se humaniza a sua alma é infinita.
Um beijo
Cada texto seu é uma surpresa e este fez-me pensar; é que, quando morrer quero ser cremado e já avisei a familia disso mesmo.
Uma historia comovente, mas narrada com tal simplicidade, que me vi também eu nessse local.
A imagem de Courbet é a cereja no cima do bolo!
Cpmtos do J. N.
hoje dei um saltinho ate aqui e vou sair do teu blog com uma lagrima no olho, esta historia e linda e cheia de amor. Adorei e emocionei-me. beijos
Que excelente post e poema...Obrigada pela sua cordial visita, um excelente inicio de semana.
Big Kiss
Um momento irrepetível cheio de emoção. Beijos.
:)
Excelente, porra! Boa semana.
Um momento sem dúvida impossivel de esquecer...
Uma nova semana tomou o seu lugar, o tempo esse corre sem parar...
Bjx e boa semana
Vim aqui por curiosidade, e saio com um nó na garganta. É esse o efeito que a beleza das palavras, vividas e sentidas tem no meu coração. Lindo, absolutamente lindo...
Otília,
Prefiro não dizer nada... chego o molhado dos olhos que me ofusca o teclado.
Lindo! Mas que aperta o coração...
Um abraço
Querida Madrinha
Abri o meu bar agora e lá espero por ti para o copo inaugural. Tem um pequeno palco à direita quando se entra, para pessoas como tu nos deliciarem com aquilo a que muitos chamam histórias, episódios ou prosas. Eu cá chamo-lhes páginas de vida e aos poemas cânticos da alma.
Esta balada, aliada à página de vida com que nos presenteaste abalam este desgastado coração por tudo o que vivi, incluindo os amores, um deles já lá no céu velando.
É, entre, outras coisas, por momentos destes que vale a pena visitar-te…sempre!
Fica em paz.
Florbela Espanca? Nada a acrescentar.
beijos
Mas que história bonita, que bonita a forma de o contar e que belo poema. Um dos maispungentes de Florbela, que aliás sei de cor há muitos, muitos anos.
Só é pena eu ter tanta dificuldade em ler os teus textos neste corpo de letra tão pequeno, Helas!
um abraço
António
Merecidos parabéns.
Lindo, é dizer muito pouco.
Prefiro dizer: BELO!
abraço de carinho,
***maat
Li este extraordinario relato no Mhario Lincoln e eme emocionei de verdade. Vc é uma escritora que gera sentimentos muito profundos sabia?
Beijão
Beth
Mas que tonta que eu sou! Como queria eu que se percebesse o meu comentário anterior, se perdi, de todo, a ligação entre uma coisa e outra? Esqueci de dizer que o falecido esposo da senhora tinha sido oficical da marinha (tal como o era o pequeno que levou a efeito a visita guiada ao museu). Ah, esta cabecita d'alho chôcho p'la madrugada afora...! :-(
Um beijinho.
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