segunda-feira, fevereiro 27, 2006

Aias da fantasia...




Não saibas: imagina...
Deixa falar o mestre, e devaneia...
A velhice é que sabe, e apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.

Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões...
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições...
Voa pela janela
De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia...



Poema de Miguel Torga, in Diário IX a págs. 65

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

O valor do Vento...


Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em Agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto


(Poema de Ruy Belo in "Todos os Poemas")



Imagem autor desconhecido

domingo, fevereiro 19, 2006

Um dia...

Ainda é grande o silêncio
que temos dentro.
Levamos
a sua lenta abóbada de tempo
cumprindo as estações e a rotação dos anos.
Mas, sobretudo, vamos crestando e sendo
a uma astral experiência.
Vamos adquirindo essa tez translúcida dos velhos
que sabe à estrutura dos planaltos.
E, um dia, iluminados, entraremos
pelo portão sagrado,
como quem deu por si em pensamento,
com todo o seu silêncio iluminando.

Tinhas este poema do Fernando Echevarría, numa folha amarelecida pelo tempo, dentro do último livro que leste. Não sei se foi de ti que herdei o meu gosto pela Poesia e pelos Poetas, mas sei que a palavra Saudade é a maior força poética que conheço… por isso deixo-te aqui outro dos teus poemas preferidos…

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos.
Por isso temos braços longos para os adeuses,
mãos para colher o que foi dado,
dedos para cavar a terra.

Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos.
Por isso precisamos velar,
falar baixo, pisar leve,
ver a noite dormir em silêncio.

Não há muito que dizer:
uma canção sobre um berço,
um verso, talvez, de amor,
uma prece por quem se vai.
Mas que essa hora não esqueça
e que por ela os nossos corações se deixem,
graves e simples.

Pois para isso fomos feitos:
para a esperança no milagre,
para a participação da poesia,
para ver a face da morte.
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem;
da morte apenas nascemos, imensamente.


[Poema de Vinicius de Morais]

Um dia voltaremos a ler juntos Poesia…

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Momentos...

Já vos aconteceu terem um mundo de palavras dentro de vós e nem uma conseguir sair do vosso pensamento?
Já vos aconteceu a saudade e a ternura que têm dentro de vós, estar de uma tal forma em ebulição, que quase faz explodir a montanha da Vida que estão a subir?
Navego nos meus pensamentos, nos meus sentimentos, na minha dor, na minha perda e, não lhes sei dar voz…
A perda de pessoas e de afectos que nos são queridos, faz-nos repensar nas coisas que poderíamos ter dito e que nunca dissemos…
Não sei porque vos digo isto, ou antes sei, mas ainda não consigo deitar para fora de mim, tudo aquilo que gostaria de partilhar, mas neste momento, as palavras não saem e, por isso, gostaria de partilhar convosco o afecto de seres que fazem parte da minha vida…e, que me ajudam a sobreviver…
Os meus amigos mais fiéis, que me mimam quando estou triste, que me fazem companhia quando estou doente...que me esperam junto à porta, quando estou ausente... que me fazem sorrir com as suas traquinices e que eu amo muito...
Hoje… neste momento… de afectos sentidos, de ausências tão recordadas, quero deixar-vos aqui com um profundo carinho, os companheiros destas horas… 



o Sting...
o Tareco...
o Hugo...



...os meus companheiros de todas as horas...

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Alvorecer...


Imagem de Rodney Smith

Vai a fresca manhã alvorecendo,
vão os bosques as aves acordando,
vai-se o Sol mansamente levantando
e o mundo à vista dele renascendo.

Veio a noite os objectos desfazendo
e nas sombras foi todos sepultando;
eu, desperta, o meu fado lamentando.
fui co'a ausência da luz esmorecendo.

Neste espaço, em que dorme a Natureza,
porque vigio assim tão cruelmente?
Porque me abafa o peso da tristeza?

Ah, que as mágoas que sofre o descontente,
as mais delas são faltas de firmeza.
Torna a alentar-te, ó Sol resplandecente!

"Sonetos", Marquesa de Alorna (1750-1839)