quarta-feira, julho 08, 2009

Pedido de casamento...

Sinto uma paz interior quando ao primeiro raiar da manhã chamo o JP que dormia ainda profundamente, para a habitual e crónica rotina hospitalar.

Confesso que nos últimos anos (já lá vão mais de nove) estes momentos eram de grande tensão para ambos, se calhar, mais para mim que para ele.

A doença avançara depressa demais e as realidades da Vida, para ele, tinham deixado de existir.

Como um menino resmungão, que não se quer levantar, barafusta para que o deixe dormir; puxo-lhe o lençol para trás e rio-me: - anda lá dorminhoco, quem te manda andar às "gatas" de noite? (a ver Tv, claro!)

Puxando a persiana completamente para cima, deixo entrar o sol que inunda o aposento, enquanto o fiel Sting, brincalhão, enceta uma gímnica vertiginosa na sua maneira pueril de mostrar a satisfação de o ver acordar.

Não é fácil falar de nós. Não é fácil falar de uma doença que, a não existir, nos teria trazido outros caminhos… Não é fácil deixar de perceber que o caminho dele não tem futuro e o meu, bem… o meu… é estar a seu lado, esquecendo que, afinal, o meu próprio caminho deixou de existir.

Deixei de existir, para ele e para mim, há muitos anos…

Existo apenas para lhe minimizar o sofrimento, para lhe dar uma vida confortável, dentro do seu próprio desconforto e que saiba e perceba, que lhe perdoei, apesar de tudo, o saber que se não fora a doença, outra já ocupava o meu lugar.

Pergunto-me, por vezes, se vale a pena anular a pessoa que sou, aquilo que sonhei, o que lutei a nível pessoal e profissional, anulando desejos e vontades, permanecendo na minha gaiola dourada.

Acho que sim. Sei que sim. Afinal, se voltasse atrás, a minha atitude teria sido exactamente a mesma.

Porque sou como sou. E não consigo ser de outra maneira.

Olho para lá da janela, onde o sol nasce, o verde da vegetação brilha ao longe, como que dando-me esperança e força.

Sinto-me em paz e a lembrança de tempos outrora felizes inunda-me e sorrio desses momentos…

O porquê destas lembranças?

No dia de hoje, há muitos anos atrás fui pedida em casamento…




 
 Imagem de Ernst Schütz


Nada direi de ti,
nem um só pensamento.

Num assomo, lentamente,
meu peito desgasta-se de palavras
que se repetem textualmente

pacientes, de toda a matéria que
se pressente para lá do que se não vê,
nem se imagina.

Entreaberto, como uma janela, meu coração
vislumbra o ocaso, em fragrâncias
de pétalas por entre caminhos
etéreos percorridos de mão em mão.

Sou quem sou.

Nesta forma de ser
não há espaço para intervalos
passeados entre os sentimentos
de olhos que nada vislumbram
nas profundezas da alma.

Rasgo meus sentidos e
abro a janela de sensações flóreas
para lá de todos os laivos de vida
que se sentem nas marés perdidas.

Hoje nada direi de ti.

Porque as palavras estão caladas
sossegadas, no fundo da alma,
e aí permanecerão.




15 comentários:

© Maria Manuel disse...

belas as palavras que o coração dita.

bjs.

Anónimo disse...

Tou-me desquitando, chorei a ler suas palavras.
Bjos
Mara

Anónimo disse...

Há que contar com os amigos.

Ana Tapadas disse...

Posso apenas deixar-te um abraço! Deves ser forte como és sensível, Menina!
beijinho

continuando assim... disse...

e o tempo sempre o terrivel tempo .... faz o resto do trabalho ... ou não ..

gostei de ler

Graça disse...

Apesar de terem formas diferentes, os dois textos perpassam um sentir... que eu senti! Não estão caladas as palavras, quando "falam" assim.


Um beijo meu

Ana disse...

Emocionei-me. Porque as palavras disseram de forma sensível, o que está guardado no fundo da tua alma.

Um abraço grande.

entremares disse...

Estes são, sem dúvida alguma, os momentos mais felizes do meu dia; aqueles em que, isolado do mundo, me sento à sombra das acácias para te escrever estas simples palavras de amor.
Enquanto escrevo, imagino-te aqui ao meu lado, sorrindo – com aquele sorriso que só tu consegues fazer – iluminado o meu olhar com a tua alegria, a tua ternura, a tua...

Passou de novo o lenço de linho branco pelos olhos. Uma lágrima teimosa insistia em cair-lhe sobre o rosto, os olhos brilhantes de emoção, as mãos a segurar ávidas a pequena folha de papel, com aquela caligrafia de escola primária, geométrica, muito direita, as vírgulas bem carregadas e os acentos todos perfilados com a mesma inclinação.
Não precisava de ver a folha de papel, há muito que decorara todo o perfume, os versos imperfeitos da segunda página, o modo mais carregado da palavra Amor – já a relera tantas e tantas vezes que a poderia recitar de memória, sem se enganar.
Deolinda de Jesus era uma mulher apaixonada, tremendamente apaixonada. Por muitos motivos, o destino levara-lhe o amor da sua vida para terras distantes, emigrante num país longínquo de Africa.
Um ano – é só um ano, dissera ele – demoraria a separação, era o prometido.
Haviam passado dois, o terceiro ia a meio... mas ele voltaria, voltaria para casa no Natal, ela tinha a certeza, ele prometia-lhe isso em todas as cartas que escrevia.
E ele escrevia-lhe muitas e longas cartas, a que ela respondia do mesmo modo.

- “...ontem, minha querida Deolinda... fui ao cinema com os meus colegas, ver um filme novo que ...”
Desviou o olhar. A pequena Susana acabara de entrar na sala e ela, numa desnecessária timidez, prontamente dobrou a folha de papel, voltando a colocá-la no sobrescrito.
- Então, avó.... vamos tomar os comprimidos ? Já são cinco da tarde...
Cinco da tarde ?
Como o tempo passava depressa. Até a própria Susana lhe parecia mais velha, assim com um corpo já de mulherzinha... para os seus – a memória não estava a ajudar – doze? treze anos?
- Olá, minha Susaninha... que bom ver-te... estás linda, como sempre... mas diz-me, estava aqui a tentar lembrar-me... e já sabes que a memória gosta de me pregar partidas... quantos anos tens? Não te ofendas de te perguntar isto... mas é que sinceramente... não me consigo lembrar da data do teu aniversário...
- Oh, avó... não faz mal, não tem importância... tenho 21, quase 22... vou fazer anos para o mês que vem, no dia 17... lembra-se? No mesmo dia do tio Joaquim, que Deus o tenha em descanso...
- 22 ? Oh, minha querida... esta minha cabeça... pois é claro... dia 17... o tio Joaquim...
- Aqui tem um copo com água. Quer que lhe endireite um pouco mais a cama?
E, sem esperar pela resposta, rodou um pouco a manivela e logo a a cabeceira da cama subiu um pouco mais.
- Está melhor assim, avó?
Ela sorriu-lhe, ternurenta. Levou obedientemente os comprimidos à boca e lá os foi acompanhando de pequenos goles de água, enquanto a neta aproveitava para prender melhor os lençóis nas extremidades da cama.
- Vá... agora já chega de leituras, está bem ? Precisa de descansar... Tente dormir um pouquinho, está bem?

( continua... )

entremares disse...

(...continuação)

A avó assentiu com um movimento da cabeça, sem largar o precioso sobrescrito.
- Até já, avó... já sabe... se precisar de alguma coisa... toque a campainha, está bem? Estou lá em baixo, a arrumar a cozinha...

- Então, como está ela hoje?
- Como está? Está na mesma, creio...
- Reconheceu-te? Falou contigo?
- Reconheceu... não se lembrava da minha idade, mas fora isso, até falou normalmente.... e claro que estava a ler de novo a carta...
- Outra vez? Aquela carta... a que tu escreveste no Natal ?
- Shiu.... fala baixo.... a avó tem Alzheimer... mas não é surda. Sim.... essa mesma carta. Ela continua a acreditar que ainda tem 30 anos... que o avô ainda é vivo e que ainda está emigrado lá para Africa...
- Mas isso já foi há mais de querenta anos, Susana...
- E depois ? Deixa estar, Rodrigo, que eu trato disso... prefiro que ela continue assim... feliz... a reviver aquele passado... do que a pensar no presente... é melhor assim...
- Não sei se concordo contigo...
- Eu sei, já falámos disso... mas ela é minha avó, não é tua... e acredita, eu tenho mesmo que fazer isto...
- ... muito bem, tu é que sabes... e olha, a propósito, lembrei-me que talvez pudéssemos ir hoje ao cinema... o Jorge disse-me que ia passar...
- Não posso, Rodrigo... a sério, gostava muito... mas tenho que ir escrever a carta desta semana...
- A carta?
- Sim... a carta que a avó tem que receber do avô... amanhã é sexta feira... e sexta feira é o dia em que ela está sempre à espera de uma carta do avô...

- Susana...
- Sim, Rodrigo ?
- Sabes que eu te adoro, não sabes?
- Claro que sei... por alguma razão casei contigo, não foi ?

( Senti que vinha a propósito... )

Lilá(s) disse...

Li e voltei a ler...fiquei deslumbrada!
Bjs

Peter disse...

Comovente. É a dura realidade da vida.

Anónimo disse...

Li-te no Hi5 :)
Li, agora, aqui...

... abri os comentários, para deixar-te, um abraço com carinho :)

c

(LUAS de mim)

bonecadetrapos disse...

Menina,
lê-la, seja em que registo for, é-me (e como lhe deixei algures em comentário), e sempre foi, um prazer.

Comento pouco, cada dia menos, porventura; leio muito, cada dia mais, com toda a certeza. Do que leio nem sempre estou certa de ter entendido, de ter sido capaz de chegar ao âmago da palavra. E volto a ler e a reinterpretar... E de novo leio.
Nunca ou quase nunca tenho convicções de me ter sequer aproximado da raiz da palavra, tal o amor e o respeito que à língua portuguesa tenho.

Todavia, das poucas certezas (perdoe o pleonasmo) que transporto quando navego a blogoesfera, são as de que, aqui e ali e mais ao lado, o seu trabalho, quer de autora, quer promotora da arte poética é de ENORME qualidade.

Saudações com estima
*__bonecadetrapos___*

Mateso disse...

Na dádiva do coração encontra-se a voz da alma.
Um sorriso em beijo doce

encantos disse...

...só hoje tive oportunidd de ler este exclt testemunho . gostei muito. Mesmo mt.
especial saudacao (aqui n há algns acentos)