quinta-feira, agosto 24, 2006

Música...

Imagem de Manuela Vaz


Sempre ali esteve, a música,
o mar, e as ondas
de pássaros caindo como chuva ao fim
da tarde,
o piano tão líquido ou batendo
em acordes sobre o aço, uma
ilusão transformando
o som sem som, em tudo semelhante
ao silêncio,
a orquestra expandindo-se ou o refluxo
limpo dos pianíssimos,
ali estava
o silêncio, equivalente
ao som do mar e da cortina
de oliveiras defendidas do crepúsculo
por um muro de branco a escuro
passando, adolescente
música
como um corpo rolando nu na areia do
dia
quando na outra margem
a nota alucinada da fábrica o enchia,
o silvo que erigia em dor
o sexo,
as ondas desse mar orquestrado por
braços que nadavam.

(Poema de Gastão Cruz in "Rua de Portugal")

terça-feira, agosto 15, 2006

Um poema...

Imagem de Gregory Mancuso



E apesar de tudo,
ainda sou a mesma!
Livre e esguia,
filha eterna de quanta rebeldia
me sagrou.
Mãe-África!
Mãe forte da floresta e do deserto,
ainda sou,
a irmã-mulher
de tudo o que em ti vibra
puro e incerto!...

- A dos coqueiros,
de cabeleiras verdes
e corpos arrojados
sobre o azul...
A do dendém
nascendo dos abraços
das palmeiras...
A do sol bom,
mordendo
o chão das Ingombotas...
A das acácias rubras,
salpicando de sangue as avenidas,
longas e floridas...

Sim! ainda sou a mesma.
- A do amor transbordando
pelos carregadores do cais
suados e confusos,
pelos bairros imundos e dormentes
(Rua 11...Rua 11...)
pelos negros meninos
de barriga inchada
e olhos fundos...

Sem dores nem alegrias,
de tronco nu e musculoso,
a raça escreve a prumo,
a força destes dias...

E eu revendo ainda
e sempre, nela,
aquela
longa historia inconsequente...

Terra!
Minha, eternamente...
Terra das acácias,
dos dongos,
dos cólios baloiçando,
mansamente... mansamente!...
Terra!
Ainda sou a mesma!
Ainda sou
a que num canto novo,
pura e livre,
me levanto,
ao aceno do teu Povo!...

(Poema "Presença Africana" de Alda Lara in "Poemas")

quarta-feira, agosto 09, 2006

Divagando...

Imagem de autor desconhecido

Passo
lentamente
como vulto
de sal e areia,
envolta no luar
que permanece
em meu olhar.

Passo
lentamente
por entre
mares e marés
de palavras
entregues
ao som da maresia.

E nesta viagem
em que sou vulto,
onda e areia,
mulher,
palavra,
aqui permaneço
estrela cadente
em noite de
lua cheia.

terça-feira, agosto 08, 2006

Amor Perdido...

Maihiuky Ilkka


só me responderás
se quiseres inutilizar
este poema de amor

ao qual dei o nome
do verso que queria
eliminar da vida...

para te lembrar
para sempre
para nunca mais

ter de esquecer
um amor perdido
porque não podia ser

(Poema de Francisco Coimbra)

sábado, agosto 05, 2006

Humor...em fim de semana...

Ele é talvez um dos mais “velhos” amigos que partilha comigo o mundo virtual. Natural de Minas Gerais, há muito passou a casa dos oitenta, mas a jovialidade e humor, estão bem patentes no espírito das suas mensagens e comentários…
Por altura do meu aniversário enviou-me um belo cartão, onde vinham inseridos a imagem e o poema que aqui partilho...


Vô contá como é triste, vê a veíce chegá,
Vê os cabelo caíno, vê as vista encurtá
Vê as perna trumbicano, com priguiça de andá
Vê "aquilo" esmoreceno, sem força pra levantá.

As carne vão sumíno, vai pareceno as vêia
As vista diminuíno e cresceno a sombrancêia
As oiça vão encurtando, vão aumentano as orêia
Os ovo dipindurano e diminuíno a pêia.

A veíce é uma doença que dá em todo cristão
Dói os braço, dói as perna, dói os dedo, dói a mão
Dói o figo e a barriga, dói o rim, dói o purmão
Dói o fim do espinhaço, dói a corda do cunhão.

Quando a gente fica véio, tudo no mundo acontece
Vai passano pelas ruas e as "minina" se oferece
A gente óia tudo, benza Deus e agradece,
Correno ligeiro pra casa, ou procurano o INSS.

No tempo que eu era moço, o sol prá mim briava
Eu tinha mil namorada, tudo de bão me sobrava
As minina mais bonita da cidade eu bolinava
Eu fazia todo dia, chega o bichim desbotava.

Mas tudo isso passô, faz tempo, ficô pra tráis
As coisa que eu fazia, hoje num sô capaiz
O tempo me robô tudo, de uma maneira sagaiz
Pra falá mesmo a verdade, nem trepá eu trepo mais.

Quando chega os setenta, tudo no mundo embaraça
Pega a muié, vai pra cama, aparpa, beija e abraça
Porém só faiz duas coisa:
sorta peido e acha graça.

(Poesia Caipira, poema e imagem de autor desconhecido)

Bom fim de semana

sexta-feira, agosto 04, 2006

Não sei como dizer-te...



Não sei como dizer-te que minha voz te procura e a atenção começa a florir, quando sucede a noite esplêndida e vasta. Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos se enchem de um brilho precioso e estremeces como um pensamento chegado. Quando, iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado pelo pressentir de um tempo distante, e na terra crescida os homens entoam a vindima - eu não sei como dizer-te que cem ideias, dentro de mim te procuram.

Quando as
folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
- E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
- não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a
primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega dos meus lábios,
sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
que te procuram.

(Herberto Helder,
Excerto do poema Tríptico in "A Colher
na Boca")


Imagem de autor desconhecido

terça-feira, agosto 01, 2006

Esta tarde...

Imagem autor desconhecido
Esta tarde,
desnudei-me

de ideias e preconceitos
e revi-me nas memórias de um tempo
que ainda não terminou.

Exalei meu perfume de fêmea madura,
expirei meu suspiro de loba faminta,
olhei para dentro de mim
e revi-me nos braços de um passado,
que se tornou presente,
de quimeras e luares,
de suores e verdades,
de paixão quente
que nunca esfriou.

Esta tarde,
sentei-me na areia
e na simplicidade
de todas as horas perfeitas,
revi-me em momentos
sublimes, únicos
onde fomos
os actores principais.

Esta tarde,
no cheiro do silêncio
que se confunde com o rumor do mar
saciei-me na voz que não ouvi,
na meiguice das palavras que não disse,
na mão que procurei e não descobri.

Segui meu caminho deixando o mar para trás,
levando no coração o calor da frieza irónica da solidão
que senti no meio da multidão.
Desta tarde...
nada mais resta...anoiteceu...



(Memórias minhas... )