sexta-feira, março 31, 2006

...palavras que trazemos...

Fotografia de Marcel Siegle

Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.

Um amigo somos nós, atravessando o olhar
e os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,

onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.

(Um Amigo, de Eduardo Bettencourt Pinto aqui)



Que o teu sentir não seja indiferente a isto e a isto


Mergulha o teu olhar neste olhar, que te pergunta:

Porquê?

quarta-feira, março 29, 2006

Se eu pudesse...

Imagem de Steve Hanks

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicações de luas e saliva

(Poema de José Gomes Ferreira)

domingo, março 26, 2006

Passagem das horas...



Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
[...]
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
[...]
Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente [...]

[*Excerto]Poema de Álvaro de Campos


[*]Podem ler aqui o poema completo...

terça-feira, março 21, 2006

Primavera... Poesia...

…em começo de Primavera, celebro a Poesia… num dos meus poemas favoritos…
Le Printemp by Sandro Botticelli

Vem Primavera.
O jogo dos sexos renova-se
Os amantes encontram seus pares.
Já a mão subtil e conquistadora do amado
Faz arrepiar o peito da rapariga.
Ela tenta-o com o olhar furtivo.

A uma nova luz
A paisagem revela-se aos amantes na Primavera.
A grande altura avistam-se os primeiros
Bandos de pássaros.
O ar já aqueceu.
Os dias são mais longos e os
Prados iluminam-se até tarde.

Desmedida é a exuberância de árvores e ervas
Na Primavera.
Perpetuamente fecundo
É o bosque, são os prados, os campos.
E a terra dá à luz o novo
Sem cuidado.


Poema de Bertolt Brecht

segunda-feira, março 20, 2006

Havia...

Imagem de Dórdio Gomes


Havia um sol desanimado entre nuvens que
numa dança voluptuosamente estranha
ameaçavam gotejar...
Havia um céu riscado de asas sobre os telhados
que escondiam mistérios encapotados
de almas geladas,
quase horizontais, solfejando seus ais...
Havia tantas janelas cerradas,
qual dentes trincados amordaçando desejos, agonias,
vitrines de flores enfeitadas...
Havia vultos recitando promessas contritas
na esperança da barganha, sorrindo à porta do templo.
Patético exemplo...
Havia um vento frio, cortante, emudecedor,
contaminando por onde passava com gélido torpor...
Havia crianças...
Havia?
Não sei, delas só sei que não se ouvia...
Havia aqueles sinuosos gatos vadios
que olhavam atentamente o nada
camuflando com suposta indiferença os seus cios...
Havia uma preguiça colectiva
exposta nas esquinas mortas
onde sequer um bêbado se via sobre as pernas tortas...
Havia uma saudade extrema e drástica,
olhos d´água carpindo tudo e nada...
Rostos pétreos em corpos rígidos, cena fantástica!
Havia aquela angustiante sensação de calma
que antecede as tragédias, embala os mortos
e contém os corpos...
Havia aquele desespero de toda urgência,
um sufocante palpitar mal dedilhado,
dissonante sinfonia executada com premência...
Havia vida, é verdade, havia...
entre paredes, dentro do peito, em torniquetes,
naquela gaivota alheia, liberta e toda branca...
Havia vida, havia...
mas ninguém via...



Poema de Sylvia Cohin 

domingo, março 19, 2006

Neste dia...


... foram para ti estas palavras, meu Pai...


Não sei bem quando foi que o meu olhar se abriu…
Apenas sei que havia um caminho: o céu, o mar e eu…
Íamos andando silenciosamente e nascia do ar uma música levezinha, feita do calmo encantamento do vento sobre os campos.
À nossa volta nasciam papoilas sorrindo.
Vinha ter connosco o perfume suave que fugia dos campos escondidos e dentro de mim, deslizava um grande mar de emoção.
Então eu descobri o sorriso trémulo da papoila, mais leve que música embalada pelo vento…
E quando o sol tombou nos meus olhos cansados, de mansinho senti que em cada adormecer do olhar, há também um poente. Porque no pressentimento da noite, a luz quieta veio descansar no vermelho do entardecer, o brilho fugitivo e doce da tarde, na força pura das árvores solitárias, acompanharam-me na calma do mar que adormeceu no meu coração.
E quando a noite era já profunda, eu peguei na música do vento e no meu sonho e fiz daí um hino comovido ao mistério das estrelas que vieram chorar os seus desejos brandos sobre o mundo e dizer-me da esperança de Viver…

Há no meu olhar, sorrisos de ternura…porque a vida é um oceano, onde nos encontramos a navegar, porque é…

O sol que nos aquece
A noite bem dormida
A esperança que não morre
A força permitida
A magia que não esquecemos…



…e o sonho que ainda comanda as nossas ilusões…

...porque os Reis Magos te levaram..e. ficou a minha saudade e o meu grande Amor por ti...

sábado, março 18, 2006

Bom fim de semana...

Imagem de autor desconhecido


Sem mais nem menos
surgiu o passado,
corpo intranquilo
feito de sons semelhantes
aos rostos que amei,
universo donde me excluí,
mar desprovido de cais
na obliquidade dos contrastes.

Esta noite voltei à minha infância:
menina rosada de sonhos nos bolsos,
bailarina de corda na caixinha de som.

À infância regressa-se solitariamente,
subindo um rio sem margens,
até ao lugar em que a nascente
se confunde com o tempo
e o tempo se transforma em espanto.

Procuro, teimosamente,
o rasto da brisa
que me invade o corpo
e apenas sei que o sonho
é um risco inquietante,
quando a solidão tem rosto
e se conhece a posição das estrelas
no âmago das palavras.

Reinicio a infância
no esboço do poema
e circunscrevo o litoral
fragmentado do que sou.

Quem foi que descodificou
o céu no meu olhar
e me deixou na alma
um deus imaginado?

Quando o espaço do sonho é circular
como o tempo das cerejas,
ou da migração dos pássaros
que fendem o infinito,
inadiado é o rito da poesia.

Se eu fosse uma gaivota, dançaria
na proa dos veleiros
até à hipnose
de abraçar a maresia.



Graça Pires in "Regresso"

quarta-feira, março 15, 2006

Manias...

Fui novamente apanhada pela corrente, desta vez quem me colocou as algemas foi a minha querida Silencebox, do Blog Baú do Silêncio, para confessar cinco manias, que eu tenha…

É de mais… eu manias?!

Quando digo (cá em casa) que não tenho manias, há um grito uníssono: “Tu? Não tens manias?AHAHAHAH”… e a gargalhada traz um reportório de “acusações”, porque…


Tenho (confesso...)

- a mania que não sou Mãe galinha… (mas sou…)
- a mania de prezar incondicionalmente as minhas amizades… (e prezo)

- a mania das miniaturas…

- Não posso ver cinzeiros sujos, corro logo a limpá-los (não fumo)

- Não suporto ouvir o telefone tocar mais de duas vezes (quem telefona, quer sempre ser atendido depressa, digo eu)

- Não posso ver a minha casa sem flores…

- Não passo um dia, sem ir espreitar o mar…

- Mesmo de inverno, gosto de ter uma janela aberta ( adoro ouvir, pela manhã, o cantar da passarada lá fora…)


Mas…eu não tenho manias! Que está a acontecer? Não digo mais nada!

Este é o momento exacto de escolher mais cinco “vítimas”, para confessarem as suas manias, que recaiem em…

Lique 
Isabel Filipe 
Lena (Cabana de Palavras)
Manel do Montado
Adesenhar


 Desculpem-me a ousadia, mas não quero ser acusada de quebrar correntes…


(Nota: algumas imagens foram retiradas da Internet)

segunda-feira, março 13, 2006

Hoje de manhã...



Hoje de manhã saí muito cedo,
Por ter acordado ainda mais cedo
E não ter nada que quisesse fazer...

Não sabia por caminho tomar
Mas o vento soprava forte, varria para um lado,
E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.

Assim tem sido sempre a minha vida, e
assim quero que possa ser sempre —
Vou onde o vento me leva e não me
Sinto pensar.


Alberto Caeiro in "Hoje de Manhã"

sábado, março 11, 2006

Memórias de mim...

Em tempo de completo alheamento de palavras para partilhar…

Nostálgica
profunda
evocadora
noite aluarada
de prata refulgente

Sobre o silêncio
caiem lentamente
orvalhadas de luz
que a noite chora

As palavras estão de luto em mim e os meus dedos, percorrem mecanicamente, pastas e arquivos, num deambular imaginário…de tempos que por mim passaram...

Sonhos em flor e
ideais antigos
passam por mim
neste alvejar sereno
sonata vibrante
orquestrando em êxtase
horizontes infinitos
onde me quedo e amo.

E, recordo com saudade outras manhãs…vivas, de ruídos alegres, de cores e sabores que enchiam a minha alma…Os meus olhos pararam num texto, escrito em outros lugares virtuais, mas de que guardo imensas saudades no coração…
Partilho esse momento aqui…

(Imagem minha)



A vozita de adolescente do meu filho lendo alto no quarto da irmã, despertou-me a atenção. Não era muito comum...

Lia pausadamente, quase comovido!...
O meu amor pelos livros incentivou muito cedo o hábito de leitura na minha filha.... mas, o vício dos jogos e do PC, evitaram sempre que o irmão lhe seguisse o hábito adquirido ainda menina, pela leitura!
Por isso, parei, surpreendida, na entrada do quarto.
Ele lia devagar, para a irmã que se encontrava encolhida na cama,
ligeiramente adoentada!
A cena fez-me sorrir... mas, o teor do texto, aguçou a minha curiosidade: que livro estaria ele a ler à irmã?
Deixei-os naquele momento mágico de leitura e comunhão entre irmãos.
Mas a curiosidade, levou-me a que de manhã, ao abrir a janela do quarto, desse uma vista de olhos pelo título do livro.
O separador marcava a última página lida, e percebi então, ao reler aquele capítulo, a voz comovida do meu filho!...
Aquele capítulo, terminava numa carta, que resolvi transcrever, na integra, recordando um texto que li aqui neste Fórum, e que me comoveu sinceramente.


- " Dia 3. Mais uma noite para esquecer e entretanto a ansiedade cresceu vertiginosamente. Não me apetece estar em lado nenhum, qualquer conversa me irrita e só me apetece sair porta fora e mandar tudo com os porcos.

Começo a sentir o cansaço e já não tenho paciência para praticamente nada. Dói-me a alma e não sei como tratá-la. Começo seriamente a ficar assustado com o facto de daqui a meia dúzia de dias começar uma vida activa. Estou farto de fracassar e há uma pergunta que não posso deixar de me fazer que é: o que é que esta vez tem de diferente das outras? Será que sou eu que pura e simplesmente tenho tendência para desistir facilmente das dificuldades da vida quotidiana?
Será loucura, será o quê? O que é que me falta para conseguir ter uma vida digna e sã? Não sei e tenho medo. Tenho quase 30 anos, dez dos quais passei quase em estado de estagnação. Deixei de conviver com muitas pessoas, umas por iniciativa delas, pois sabiam do meu novo rumo, outras por minha iniciativa, pois a minha "nova vida" não era conciliável com a deles e aí comecei com um processo de socialização total" -


(Texto extraído do livro, AGONIA - Uma Lição de Vida, de João Ferreira)

Porque há momentos que merecem ser recordados...





BOM FIM DE SEMANA

quinta-feira, março 09, 2006

Um Blog. Um livro. Uma referência...


“… mas o autor não é místico, nem religioso e, muito menos, cientista…”

Esta é a definição que o autor faz de si próprio, em determinado momento numa emocionante aventura, que me prendeu… do princípio ao fim!

A partir de um blog, o autor conseguiu construir um caminho vinculado na opinião de variadíssimos testemunhos, em que ele nunca se quis centrar no papel principal, fazendo uma interligação muito inteligente, de todas as matérias que queria abordar.


Falo-vos de um livro cuja leitura, terminei precisamente hoje… ” E Deus tornou-se visível...” de Henrique Sousa, que é também o autor do Blog
Hora Absurda e que me mostrou a “outra face” da blogosfera… que partilho com todos vós, deixando-vos uma questão a que, o próprio autor alude…

“Haverá também energias do Bem e do Mal? Haverá forças boas e forças más?”

"…Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do eléctrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa. “
Álvaro de Campos in " Passagem das Horas "

quarta-feira, março 08, 2006

No dia da Mulher, dedicado ao homem...


Moço, cuidado com ela!
Há que se ter cautela com esta gente que menstrua...
Imagine uma cachoeira às avessas:
cada acto que faz, o corpo confessa.
Cuidado, moço
às vezes parece erva, parece hera
cuidado com essa gente que gera
essa gente que se metamorfoseia
metade legível, metade sereia.
Barriga cresce, explode humanidades
e ainda volta pro lugar que é o mesmo lugar
mas é outro lugar, aí é que está:
cada palavra dita, antes de dizer, homem, reflicta..
Sua boca maldita não sabe que cada palavra é ingrediente
que vai cair no mesmo planeta panela.
Cuidado com cada letra que manda pra ela!
Tá acostumada a viver por dentro,
transforma facto em elemento
a tudo refoga, ferve, frita
ainda sangra tudo no próximo mês.
Cuidado moço, quando cê pensa que escapou
é que chegou a sua vez!
Porque sou muito sua amiga
é que tô falando na "vera"
conheço cada uma, além de ser uma delas.
Você que saiu da fresta dela
delicada força quando voltar a ela.
Não vá sem ser convidado
ou sem os devidos cortejos..
Às vezes pela ponte de um beijo
já se alcança a "cidade secreta"
a Atlântida perdida.
Outras vezes várias metidas e mais se afasta dela.
Cuidado, moço, por você ter uma cobra entre as pernas
cai na condição de ser displicente
diante da própria serpente
Ela é uma cobra de avental
Não despreze a meditação doméstica
É da poeira do quotidiano
que a mulher extrai filosofando
cozinhando, costurando e você chega com a mão no bolso
julgando a arte do almoço: Eca!...
Você que não sabe onde está sua cueca?
Ah, meu cão desejado
tão preocupado em rosnar, ladrar e latir
então esquece de morder devagar
esquece de saber curtir, dividir.
E aí quando quer agredir
chama de vaca e galinha.
São duas dignas vizinhas do mundo daqui!
O que você tem pra falar de vaca?
O que você tem eu vou dizer e não se queixe:
Vaca é sua mãe. De leite.
Vaca e galinha...
ora, não ofende. Enaltece, elogia:
comparando rainha com rainha
óvulo, ovo e leite
pensando que está agredindo
que tá falando palavrão imundo.
Tá, não, homem.
Tá citando o princípio do mundo!

(Poema de Elisa Lucinda)
Este Poema foi-me enviado impresso num postal, por uma Amiga, que desistiu de viver.
Vitima de maus tratos, vivia apavorada que alguém descobrisse a origem do corpo negro, que a todo o custo tentava esconder.
Cansada da Vida, numa manhã de sol, meteu-se ao mar e não voltou…
Dizem que morreu afogada…
É para ela, a minha homenagem, bem como para todas as Mulheres que, como ela, não têm coragem de viver…

segunda-feira, março 06, 2006

A um Secreto Leitor...


No silêncio da noite é que eu te falo
Como através dum ralo
De confissão.
Auscultadores impessoais e atentos,
Os teus ouvidos são
Ermos abertos para os meus tormentos.

Sem saber o teu nome e sem te ver
- Juiz que ninguém pode corromper –
Murmuro-te os meus versos, os pecados,
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.


(Poema de Miguel Torga)


Imagem de autor desconhecido

quinta-feira, março 02, 2006

Pássaro Preto

Porque há momentos em que a comoção fala mais alto…


Negro, negro
cabelo branco... manhãs e tardes
na tua varanda gradeada.
Ora só, numa preguiçosa
ora acompanhado, num dominó animado
... mas só ou acompanhado
ouve-se o cantar de um pássaro cativo.

Negro, negro
cabelo branco:
tens grades na varanda
pássaro preto
tem grades na gaiola.

Negro, negro
cabelo branco:
ao menos tens a chave da porta
... pássaro preto
água, arroz, tristeza, revolta.

Branco, branco
cabelo preto:
estar no meio de gente é não estar só?

Branco, branco
cabelo preto:
um homem, tendo a chave da porta seguirá seu caminho?!
... caminho que leva às ruas e praças – sem medo?

Branco, branco
cabelo preto:
já escapei de corisco
catei caranguejo como bicho
derrubei marruá na unha
segurei a vida com os dentes
com os dentes enxotei a morte
mas o cutelo fatal nos encontra qualquer hora
fazendo-nos chorar os filhos antes da hora.

Branco, branco
cabelo preto:
quantas covas abertas
quantos calos nas mãos
pro caroço virar espiga
e matar a fome da família desse cristão?
Branco, branco
cabelo preto... uma coisa me intriga:
por que não vejo a maior parte dos frutos da minha lida?!

Branco, branco
cabelo preto:
o prefeito, o deputado, o juiz, o padre, o pastor
dizem:
todos são por mim
fazem leis que me protegem
rezam horas a fio pela minha salvação
... mesmo assim as coisas não melhoram pro meu lado
... quão grande será o meu pecado?!

Branco, branco
cabelo preto:
o que tem a ver com o meu pecado
o pássaro
por mim engaiolado?

Branco, branco
cabelo preto:
... ah, esse desejo de ir pra lá do horizonte!
... essa voz presa, querendo ecoar nas folhas dos carnaubais
onde canta livre o pássaro preto!

Branco, branco
cabelo preto:
um dia
a correr com o vento
volto no tempo
donde escapei de corisco
derrubei marruá na unha

Mas
se na unha segurei a vida
se com os dentes enxotei a morte
o tempo sem dó foi me enredando.

Hoje estou preso
tal pássaro cativo.

Volto pra várzea
levo a gaiola
abro a porta
solto o pássaro.
Livre
o pássaro solta um grito
solta o canto
(não mais de tristeza ou revolta).
Olha para mim
como a dizer: - “vem!”
Quedo mudo
ali parado.

Cantando
o pássaro voa pro infinito.

Tem nada não, passarinho:
também vôo... um dia!



Poema que o meu querido Batista Filho me dedicou aqui...